sábado, 24 de janeiro de 2015

Mais um artigo sobre o nível da educação no Brasil

Vergonha nacional e paixão por livros, por Urariano Mota



Depois dos últimos resultados da prova de redação do Enem, parece que a educação no Brasil oscila como um pêndulo entre dois extremos. O movimento do relógio vai do ótimo de poucos estudantes ao péssimo da maioria. O dado unificador no conjunto de tantas disciplinas, de matemática a história e ciências, foi a marca da prova de redação. Pelas notícias na imprensa, conhecemos, por um lado, os novos gênios – aqueles que alcançaram o máximo, a nota 1.000 em redação, 250 apenas, em mais de 6 milhões. Por outro lado, o escândalo dos 529 mil alunos que tiraram a nota zero, num universo em que a maioria obteve até 600 na redação.
Desse...  “escândalo”, que é o de jovens desumanizados todos os dias e que ninguém vê, mas que vira escândalo quando aparece em nota de vestibular, uma das expressões foi o artigo de Arnaldo Niskier, doutor em educação, sob o título de Vergonha Nacional. Escreveu o imortal ad ABL na Folha de São Paulo: “Estamos vivendo em nosso país tempos sombrios em matéria de qualidade do ensino, especialmente se considerarmos a educação pública...” (lembra a narração de filme de terror). E continua:
“O que esperar dessa  geração? Quando em um universo de quase 6 milhões de alunos só 250 tiraram a nota máxima (mil) na indispensável redação, pode-se inferir que estamos diante de uma fase caótica, a exigir providências que não podem mais tardar... Para acabar com essa vergonha, só uma ampla reforma”.

Mas não aponta qual ou para onde.

No outro extremo, as notícias falavam dos ótimos 250 estudantes, mais resistentes e heroicos, porque em menor número, que os 300 de Esparta. Dos últimos guerreiros do escândalo da nota mil em redação, se falou que tunham em comum a paixão pelos livros. Entre as séries "O Senhor dos Anéis" e "Crônicas de Gelo e Fogo",  autores J. R. R. Tolkien, George R. R. Martin, e Dan Brown, de "O Código Da Vinci",e treinos para a prova, esses jovens leem. E tal coincidência causou o maior espanto entre o escândalo.

Mas deveria ser claro, para todos e em todos os tempos: sem ler, sem o entendimento do que se lê, ninguém vai a lugar nenhum, do porto do Recife à estrela da última nebulosa no espaço mais distante. Essa notícia, de jovens que melhor escrevem porque gostam de ler, é uma verdadeira redescoberta da pólvora. Ou uma reinvenção da roda. Ainda assim, a notícia me faz refletir para que serve a leitura, ou, num salto de qualidade, para que serve a literatura.

Para que é mesmo que serve a literatura? De um ponto de vista estrito de grana, de moeda que compra alimento, álcool, camisa que sirva além do corpo de quem escreve, que vá além da vaidade do autor, existe alguma utilidade na literatura? Existe algo nela que diga somos todos humanos, e o reino da felicidade é a socialização da carne espírito? Existe nela algo que, sem cair dos seus objetos mais nobres, chame a atenção para que a poesia tem um poeta em estado de necessidade, e por isso lhe traga um pouco mais de carinho e pão?

Nos tempos em que pensei ser professor, sempre tentei dizer a jovens estudantes que a literatura  era fundamental na vida  de todos. Mas quase nunca tive sucesso nessas arremetidas rumo a seus espíritos. Minhas palavras pareciam não fecundar. Primeiro porque a literatura ministrada a eles, em outras aulas, destruía todo o gozo de viver. Os mestres, profissionais ou burocratas, ensinavam-lhes a anti, a literatura para antas, com listas de nomes, datas e resumos de obras, nada mais. Em segundo lugar eu não fecundava porque o valor do sentimento, o sentido de uma rosa, o cântico de amor ou o desajuste de pessoas em uma sociedade corrupta nada significava para as tarefas mais práticas, que se impunham.

- O que eu ganho com isso, professor?

E com “isso”, o jovem, quando de classe média, queria me dizer, que carro irei comprar com a leitura de Baudelaire? Que roupas, que tênis, que gatas irei conquistar com essa conversa mole de Machado de Assis? Então eu sorria, para não lhes morder. A riqueza do mundo das páginas dos escritores, a gratidão que eu tenho para quem me fez homem eu sabia. Mas não achava o que dizer nessas horas quando o petardo de uma frase de Joaquim Nabuco, por exemplo, poderia ganhar a zombaria de toda a gente. Eu sorria e me punha a gaguejar coisas estapafúrdias do gênero os poetas são os poetas, Cervantes era Cervantes. E me calava, e calava a lembrança dos sofrimentos e humilhações em vida do homem Cervantes que dignificou a humanidade.

- O que eu ganho com isso, professor?

Quando essa pergunta me era feita por jovens da periferia, excluídos, isso me ofendia muito mais que a pergunta do jovem classe média. Aos de antes eu respondia com uma oposição quase absoluta, porque não me via em suas condições e rostos. Mas a estes periféricos, não. Eu passava a ser atingido nos meus domínios, na minha gente, porque eu olhava os seus rostos e via o meu, no tempo em que fui tão perdido e carente quanto qualquer um deles. Então eu não sorria. Aquilo, do meu semelhante, me acendia um fogo, um álcool vigoroso, e eu lhes falava do valor da literatura com exemplos vivos, vivíssimos, da minha própria experiência. Então eu vencia. Então a literatura vencia. Mas já não tinha o nome de literatura. Tinha o nome de outra coisa, algo como histórias reais de miseráveis que têm a cara da gente. Que importa? Que se dane o nome, vencia a literatura.

Então, por fim, essa é a qualidade maior da literatura, acredito: libertar nos brutos que somos o nosso melhor humano. É algo muito mais precioso, e eterno, enquanto houver humanidade, do que tirar uma nota 1.000 na redação do vestibular.  Ou, se quiserem, pode ser criado até um slogan de anúncio comercial: virem humanos e, de desconto, ganhem uma nota mil no vestibular.

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